Dívida não é transmitida por herança, mas pode ser tributada pelos estados; entenda
Por: Eduardo Cucolo
Fonte: Folha de S. Paulo
O maior risco para herdeiros de pessoas que deixam dívida não está nos
credores privados, mas nas regras de tributação de alguns estados.
Em muitos casos, o ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação)
é cobrado sobre o valor bruto da herança, sem considerar o que foi
efetivamente recebido pelos sucessores.
De acordo com a legislação brasileira, dívidas de pessoas falecidas devem ser
quitadas com o patrimônio deixado no inventário. Se não houver bens ou o
valor deles for insuficiente para pagar o que é devido, elas não são transferidas
automaticamente para os herdeiros.
Os sucessores só podem ser demandados em casos específicos. Por exemplo,
se for detectado algum tipo de fraude para esvaziar esse patrimônio. Ou na
hipótese de, após a distribuição dos recursos, surgir algum credor do falecido.
Se houver uma dívida de longo prazo, o herdeiro pode assumir o patrimônio e
a obrigação financeira, que fica sempre limitada ao que foi recebido como
herança.
O advogado Jaylton Lopes Jr., do escritório Agi, Santa Cruz & Lopes, explica
que, quando uma pessoa morre, todas as relações jurídicas patrimoniais vão
compor o espólio.
"Isso não significa dizer que os herdeiros herdarão todas as dívidas do falecido.
As dívidas não ultrapassam o patrimônio e devem ser pagas pelo espólio",
afirma.
Se o falecido sofria uma ação de execução, por exemplo, o credor pode pedir a
penhora dos bens em nome deste, ainda que ele tenha morrido, para poder
quitar essas dívidas, segundo o especialista. Ou seja, ele não pode acionar
diretamente o herdeiro, tem que acionar o espólio.
Caso haja mais dívidas do que bens, haverá uma situação de insolvência do
espólio, que passará por um processo semelhante ao de uma falência para o
pagamento dos credores. Cabe ao responsável pelo inventário pagá-los com
esses recursos e deixar apenas o patrimônio líquido, se houver, para ser
partilhado entre os herdeiros.Lopes Jr. diz que, se por alguma falha for feita a partilha sem que todos os
credores tenham recebido os valores devidos, eles podem acionar os herdeiros,
mas estes só podem ser cobrados até o limite da herança que receberam.
O advogado Thiago Cerávolo Laguna, sócio da área tributária do escritório Dib,
Almeida, Laguna e Manssur, reforça que a responsabilidade dos herdeiros está
limitada ao valor da herança, exceto em casos em que se configura fraude contra
credores ou contra execuções.
"A dívida nunca vai superar o valor da herança", afirma. "Mas se ficar
configurado que houve doação com intuito de esvaziar patrimônio e frustrar
uma cobrança efetiva, ela pode ser objeto de nulidade."
Em relação ao ITCMD, no entanto, a obrigação de pagar o imposto é do
herdeiro, não do espólio. O tributo deve ser pago em até 180 dias após a morte
de quem deixou os bens. Em inventários judiciais que ultrapassem esse prazo,
a Justiça pode autorizar o pagamento posterior sem multa, apenas com correção
monetária do valor.
Alguns estados tributam o valor bruto do espólio. Ou seja, mesmo quem não
recebe nada pode ser obrigado a recolher o tributo. Essa prática está prevista
para acabar após a aprovação do segundo projeto de lei que regulamenta a
reforma tributária, que está em análise no Congresso.
Atualmente, para escapar dessa taxação é necessário recorrer ao Judiciário, que
tem decidido a favor dos herdeiros. Foi o que ocorreu no caso do espólio do
apresentador Silvio Santos (1930-2024), cuja discussão na Justiça também
envolve a questão da tributação de heranças no exterior.
A Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo, por exemplo, entende que as
dívidas não são dedutíveis para fins de cálculo do ITCMD e cobra os herdeiros
com base no valor patrimonial total, diz Laguna.
De acordo com o especialista, há decisões do TJSP (Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo) de que a dívida deve ser abatida na hora de calcular o
imposto. "O próprio projeto de lei complementar da reforma tributária que
trouxe algumas alterações no ITCMD [PLP 108/2024], expressa que as dívidas
têm que ser abatidas da base de cálculo. É uma inovação legislativa positiva
nesse assunto", afirma Laguna.
Jaylton Lopes Jr. afirma que somente as obrigações do espólio poderiam
considerar o patrimônio total. Mas como quem paga o ITCMD é o herdeiro,
ele só pode ser tributado sobre aquilo que está recebendo efetivamente.
"Essa posição do estado é absolutamente ilegal. A leitura do Código de
Processo Civil e do Código Civil revela de forma cristalina que só posso tributar
aquilo que o herdeiro vai receber", afirma. "A reforma tributária está deixando
tudo muito mais claro."